sexta-feira, 4 de outubro de 2013

Pela morte de mais tatus



Eram alguns minutos passando as onze e quarenta daquela noite de 4 de Outubro quando o uma enorme massa de plástico inflada com ar foi ao chão e virou apenas um amontoado colorido dentro de um pequeno buraco. Ao redor dele, o Largo Glênio Peres, no coração palpitante de Porto Alegre , tinha seu piso sujo com sangue e suor de quem apanhava das forças de repressão naquele massacre, há exatamente um ano.
A copa do mundo, erguida e assentada sob o a escuridão não-divulgada de remoções, perseguições, torturas e assassinatos nas periferias e nos centros do país, simbolizada bem no meio de Porto Alegre por um tatu-bola vestido com uma camiseta vermelha que estampava o símbolo de uma mega-corporação transnacional igualmente erguida sob a sombra de exploração e omissões, mostrava nada menos do que a verdadeira face do Estado: um braço forte e fecundo em defesa do Capital.
A Copa do Mundo – que nunca teve consulta ou aceitação popular, sobretudo entre os mais pobres – não foi abalada com a queda daquele tatu, o poder não foi sequer ameaçado com a queda do boneco, a coca-cola não se sentiu acuada diante do episódio que mais pareceu um genocídio campal – porque nem guerra foi. A importância e o simbolismo daquele 4 de Outubro, o ato intitulado Defesa Pública da Alegria, remete a um entendimento um pouco mais amplo do que vivemos hoje.
Arrisco dizer, com receio de estar hiperbolizando a importância do acontecimento, que o inesquecível Junho de 2013 talvez não tivesse acontecido no Brasil inteiro sem o que ocorreu naquele Outubro de 2012, há um ano atrás, quando um ato pela defesa dos espaços públicos virou massacre do Estado.
Não foi só o tatu que caiu naquele dia, foi a cara de felicidade de um prefeito amigo do empresariado, que já havia dado o Auditório Araújo Viana para o setor privado e que estava prestes a entregar também o Glênio Peres; foram as trinta e tantas pessoas encaminhadas diretamente pro Hospital de Pronto Socorro, algumas com ferimentos profundos; o que caiu foi a máscara de uma gestão que proibiu atividades naquele largo com receio de “estragar o calçamento” mas permitiu que a Copa do Mundo – cujo adversário real é o povo pobre – colocasse seu mascote ali, com sorriso cínico e camiseta vermelha, como que um recado de que a cidade não é das pessoas, é da Coca-Cola, um aviso de que a hegemonia e o poder do Estado não podem ser questionados.
Mas caiu.

Caiu a esperança de uma “copa da paz”, caiu a tranqüilidade inerte com que lidavam o prefeito e o governador, caiu o tatu, caiu o apoio à copa, caíram outrss três tatus: em São Paulo, em Brasília e em Belo Horizonte.
Como em Junho, Porto Alegre iniciou com muita coragem e pouca esperança um movimento que se espalharia por outras cidades e criaria as raízes para as jornadas do meio do ano, quando o tatu não foi esquecido, e milhares de pessoas cantaram juntas: “TATU, TATU, TA TUDO ERRADO”.
E continua tudo errado.
Naquele 4 de Outubro, quando a RBS filmou de longe e disse que eram “anarquistas arruaceiros, os mesmos que derrubaram o relógio dos 500 anos”, quando o comando da Brigada Militar defendeu a ação de seus homens e anunciou que “nós fomos atacados com pedras e paralelepípedos, o Batalhão de Choque só agiu em defesa do patrimônio público e da segurança das pessoas”, fazendo o rascunho de um discurso amplamente repetido depois de cada prisão arbitrária, assassinato, perseguição, invasão e tortura durante os protestos desse ano. Ali, rompeu-se definitivamente o pacto social, o contrato foi rasgado e o Estado perdeu definitivamente o monopólio da violência, a resposta veio em 50 mil vozes nas ruas, a resposta foi uma passagem a R$ 2,80, um Glênio Peres rotineiramente ocupado por eventos culturais e um Araújo ainda sem demanda, por conta dos altos preços.


Existem ainda muitos tatus pra cair: tatus são nossos inimigos, é cada banco cuja fachada segue protegida por uma linha de homens com farda militar, é cada aumento de passagens, é cada derrubada de árvores, é cada discurso inflamado em defesa dos ricos, é cada “queixa-crime” e cada CPI contra os que ousam lutar, é cada bomba jogada sobre as pessoas, é cada vez que um governo se sente no direito de perseguir, torturar e até matar para defender os interesses privados.

Tatus são tudo aquilo que nos separam da vida em liberdade, de uma cidade universal, para todos e todas, de um país que respeito os direitos humanos – de todos os seres humanos, de um país onde valorizar a educação seja mais importante do que uma copa do mundo da especulação.
Não se pode entender aquele 4 de Outubro pela televisão. Na telinha, 100 arruaceiros tentavam furar o boneco quando a Brigada Militar teve de intervir e foi recebida com pedras, paus, garrafas e violência. No jornal, as mesmas coisas: cinco menções enormes ao episódio, incluindo um texto no editorial e uma reportagem especial de duas páginas acerca do assunto. Na rua, artistas, estudantes, trabalhadores, mais de 300 pessoas que sabem que “a rua é a maior arquibancada do Brasil” cantavam e faziam festa, ocupando um lugar que é delas ao passo que gritavam por uma cidade das pessoas, legitimamente com acesso a todos.

Pessoas que, depois de mais de cinco horas de festa e alegria, caminharam até o Glênio Peres para cercar de felicidade aquele tatu feito de mortes e tristeza, mostrar que a cidade ainda é do povo e que pode ser mais ainda. Pessoas que foram abruptamente interrompidas por homens fardados, violentos, armados e dispostos a dar a vida em defesa da integridade física daquele boneco, em nome da integridade e da segurança da Copa do Mundo e da Coca-Cola, homens pagos pelo Estado para defender os símbolos do capital privado.
A partir daí, sabemos bem: uma chuva de cacetadas, violência, perseguições pelas ruas, internações emergenciais nos hospitais, câmeras apreendidas e uma certeza: o Governo declarara uma guerra que atingiria seu ápice alguns meses depois.
E aqui estamos, um ano tortuoso, longo e cheio de vitórias em âmbito nacional, um país sacudido pelo pulo de milhões e pelas bombas de alguns, patrocinadores temerosos pedindo ajuda do governo para conter as massas, presidentes dizendo que “vamos fazer tudo que for necessário para quer a copa não seja prejudicada”, como a Brigada Militar fez naquele dia. Um ano depois, o mesmo Estado que expulsou à força as pessoas do Glênio Peres continua jogando bomba – em professores, em estudantes, em trabalhadores, em índios –, continua despejando pessoas pobres de suas casas, continua defendendo a Coca-Cola e determinando o que “muda o mundo” e o que nunca vai mudar.

O que mudou foram as pessoas.
O que mudou foi a paisagem de Porto Alegre, cujo centro segue sendo ocupado semanalmente por gente que luta, com um Glênio Peres que recebe o “Largo Vivo” para alegrar a vida no local onde ela quase teve um fim para algumas pessoas.


E onde o tatu morreu.
Que consigamos derrubar mais e mais tatus-bola, que consigamos derrubar mais e mais símbolos do capital e copas do mundo Brasil afora, que tudo que continue de pé sejam as massas organizadas, os punhos e os sonhos.
Vamos continuar fazendo cair: tatus, passagens, máscaras e molotov’s. Porque cada vez que o Estado se ergue diante de nós como um boneco de plástico que parece invencível, lá estão as pessoas, unidas, cantando e dançando em torno dele, mostrando que a humanidade vai na contramão do poder.
Não esquecemos, não perdoamos.
Que o Tatu siga morto. E a luta siga viva.



[O Youtube está repleto de vídeos que comprovam (como se precisasse) que foi a BM que começou uma violência explícita e revoltante, alguns bem didáticos e interessantes]



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Guilherme Ulema
guilhermeulema@hotmail.com






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